“Lembro de como foi crescer entre as pessoas e os lugares que eu amava. Mais do que tudo, lembro de como foi ir embora.”
Outubro de 1979
Faltava apenas uma semana para o fim da minha clausura de 3 meses e já tendo decidido o que fazer da minha vida dali em diante, aproveitava o tempo livre para preparar minha partida. Em uma semana estaria de mudança para Londres, onde cursaria gastronomia por um ano e meio no Lê Cordon Bleu. Já havia alugado um apartamento perto da escola e lia um folheto informativo sobre o curso quando um estampido me assustou. Minha irmã mais velha havia acabado de aparatar no meio da sala.
– Karen? O que está fazendo aqui? – levantei do sofá e fui até ela – Não deveria estar em Hogwarts? – ela correu até a janela. Caia uma tempestade lá fora – O que está fazendo?
– Droga! – ela fechou a cortina bruscamente e foi escorregando na parede até sentar no chão.
– Karen! – abri um pouco da cortina e vi Kegan parado no gramado, debaixo daquela chuva toda – Ele vai morrer de hipotermia lá fora, mande-o entrar!
– Não! Não mandei ele me seguir, não quero que ele entre!
– O que está acontecendo aqui? – papai apareceu na sala e se espantou a ver Karen sentada no chão.
– Aparentemente, ela quer matar Kegan de hipotermia – abri a cortina outra vez e papai espiou pela janela.
– Por que seu namorado está sentado no meu gramado, debaixo de um temporal? – ele perguntou calmamente, já imaginando uma resposta idiota. Afinal, era Karen e seus dramas.
– Ele quer que eu me case com ele.
– O que? Como ele ousa? – fingi indignação e papai segurou uma risada.
– Por mais que seja difícil para um pai aceitar que sua filha se case, por favor, me explique onde está o problema.
– Nós só estamos juntos há 4 meses! – sabia que ela tentava usar um argumento convincente, mas não enganava a mim e ao papai – Sim, eu gosto dele, mas casar? Já?
– Existe uma explicação para a pressa? E por Merlin, Scott, mande-o entrar! Ele vai ficar doente lá fora.
– Ele foi transferido pra Bulgária, vai comandar o Quartel General de Aurores do Ministério de lá e não quer ir embora se eu ficar. Não gosto de ser pressionada.
– Ele não quer entrar – fechei a porta da sala – Disse que só sai da chuva quando Karen disser sim.
– Você ama esse rapaz, minha filha?
– Pai, são 4 meses – Karen começou, mas empacou na metade e não completou o pensamento.
– Não perguntei há quanto tempo vocês estão juntos. Só responda a pergunta com sim ou não, sei que você tem essa resposta. Você é minha filha, é decidida e sempre soube qual seria o próximo passo na sua vida, não importava a idade. Você ama esse rapaz?
– Amo. Muito.
– Então porque você está aqui dentro, enquanto ele está lá fora na chuva? Está com medo de ser feliz?
Karen nos encarou mais alguns segundos, então levantou do chão e atravessou a porta para o quintal sem dizer nada. Abrimos a cortina a tempo de ver minha irmã se aproximar de Kegan e depois de trocarem algumas palavras que não podíamos ouvir, deram um longo abraço que terminou em um beijo apaixonado. Há algum tempo atrás eu havia chegado à conclusão que tudo de importante na minha família sempre acontecia em dias de chuva. Hoje não havia sido uma exceção. Tinha acabado de ganhar meu primeiro cunhado.
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– Você está oficialmente liberado, Sr. Foutley – o funcionário do Ministério terminou de desfazer o feitiço colocado em nosso quintal e me estendeu a mão – Já cumpriu a sentença.
– Obrigado, e espero não ver você nunca mais – apertei sua mão também, sorridente – Sem ofensas.
O homem riu e desaparatou da propriedade. Olhei para meu pai ao meu lado e depois para o jardim a minha frente que não pisava havia 3 meses, então sai correndo feito um louco, rodeando todo o imenso gramado, enquanto meu pai ria da porta da casa. Estava livre.
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– Scott, está pronto? – papai apareceu na porta do escritório.
– Quase.
Estava sentado no sofá, cercado de caixas, enquanto terminava de esvaziar tudo que tinha deixado espalhado ao longo dos anos pela casa. Quando decidi estudar gastronomia, a idéia inicial era ir para Paris, mas com meu francês não tão bom assim e o rápido protesto das meninas, alegando que havia a mesma escola em Londres, revi meus planos. Elas estavam empolgadas com a idéia de me ter por perto outra vez e eu não poderia estar mais feliz por estar finalmente deixando a Suécia e seguindo minha vida, mas não conseguia deixar de me sentir um pouco triste. Meu sonho sempre foi ir embora, mas agora que havia chegado a hora, percebi que não era tão simples assim dizer adeus.
– Está tudo bem? – ele entrou vendo que encarava as caixas cheias com um ar vago.
– Sim, é só que… Pensei que seria mais fácil.
– Ir embora nunca é fácil – papai sentou ao meu lado no sofá – Você foi feliz aqui, sempre vai sentir saudades.
– Você vai ficar sozinho nessa casa enorme…
– Posso me cuidar sozinho, Scott. Não vou ser encontrado no chão da sala três meses depois da ultima visita de vocês, em decomposição.
– Ai papai, que horror! – fiz uma careta de reprovação e ele riu.
– O que foi? – ele parou de rir e me encarou sério – Quer falar alguma coisa, não é? Está com aquela cara de quem quer contar algo, mas não sabe se deve mesmo.
– Parece que você me conhece melhor do que eu pensava.
– Isso vai soar extremamente egoísta, mas esse período que você passou sem poder sair de casa nos fez muito bem. Eu pude fazer o que não fiz em 17 anos: conhecer meu filho.
– É, acho que posso dizer o mesmo, pai. Três meses atrás, eu não teria coragem de dizer o que estou prestes a dizer a você – encarei-o, e pela primeira vez, sem mais nenhum receio – Sei que você já sabe, é obvio, mas eu preciso admitir isso em voz alta, em nome da relação que construímos nesses três meses. Eu sou gay.
– É, eu já sabia disso, mas fico feliz que tenha tido a consideração de me contar e não apenas deixar como estava. Imagino que o irmão de Kegan é seu namorado – confirmei com a cabeça e ele apenas sacudiu a dele – Ok, sua mãe já vinha me preparando para isso, está tudo bem.
– Você não tem que adorar, pai. Se apenas aceitar, já fico satisfeito.
-Você é meu filho e se você está feliz, eu também estou – ele sorriu e levantou do sofá, pegando a caixa vazia do chão – Melhor lhe ajudar com o resto das coisas, ou você vai perder seu primeiro dia de aula.
Levantei também, como se tivesse tirado um peso enorme das costas. Havia conseguido admitir a meu pai que era gay e ele não havia me rejeitado por isso. Ele tinha razão, aqueles três meses preso em casa fizeram muito bem a nossa relação, sempre tão cheia de falhas, mas que agora parecia completa. Claro que sempre haveria um desentendimento aqui ou ali, afinal, éramos pai e filho, mas agora sabia que meu pai me aceitava do jeito que eu era, com todas as minhas qualidades e defeitos.
Consegui me mudar naquela noite e meu pai me acompanhou até Londres, voltando para a Suécia na manhã seguinte. Wayne se mudou de volta para casa uma semana depois, para se formar na Academia de Aurores de Gothland. Megan se juntou a ele um ano depois, e Wayne morou na mansão com papai até alguns anos depois de se formar, mas Megan nunca foi embora.
Karen se casou com Kegan um mês depois, em uma cerimônia simples na Irlanda, mas com todos os familiares e amigos presentes. Mudaram para a Bulgária no dia seguinte, onde ele assumiu o Departamento de Aurores do Ministério e ela começou a lecionar Literatura Mágica em Durmstrang até o nascimento do meu primeiro sobrinho, Christopher, três anos depois.
Quanto a mim… Bom, eu fui embora para Londres sem olhar para trás. E nunca me arrependi.
N.A.: O fim do texto está com essa cara de series finale, mas é porque encerrei a fase do Scott adolescente. A partir de agora, sempre que um texto dele surgir, já será em sua fase adulta, formado e dono do próprio nariz, bem longe da casa onde cresceu. Então sim, é um final, mas um season finale.